domingo, setembro 30, 2007

A cobra

Eu começara a ganhar raízes pelas barreiras. Ia apreendendo a conhecer os répteis pelo rumor. Quando o sol apertava, uma cobra azul, não, verde, não, azul, aproximava-se, os olhos cor de basalto. Ficava ali a olhar-me, eu a olhá-la. Fascinados. Um dia não sei o que me deu, corri a trás dela, entrou num buraco das silvas, ainda lhe acertei com a pedra, por momentos a cauda agitou-se crispada em convulsões, depois desapareceu, talvez lhe tivesse quebrado a espinha, nunca mais a vi. Era azul. Verde. Um braço de sol

Eugénio de Andrade

sexta-feira, setembro 28, 2007

Tudo é como dantes

Tudo está ainda como dantes
desde que partimos para a guerra
desde a infância
Talvez o sol destes anos tenha desbotado o branco das cortinas
as pedras da alameda se tenham arredondado e ganho brilho
Talvez a erva tenha crescido
ou tenha secado
As três vidraças estão como dantes
tal como a fotografia da família
o Corão encardenado
o rosário da avó desaparecido
Tudo estás como dantes
nada mudou
excepto nós
nós que caímos
do sino da escola
na guerra
e ainda não voltamos

[Ghassane Zaqtane]

quinta-feira, setembro 27, 2007

As multidões

Nem todos é dado o prazer um banho de multidão: gozar a turba é uma arte; e só pode fazer um festim de vitalidade à custa do género humano aquele a quem uma fada insuflou no berço o gosto do disfarce e da máscara, o ódio ao domicílio e a paixão pelas viagens.
Multidão, solidão: termos iguais para o poeta activo e fecundo. Quem não sabe provar a sua própria solidão, também não sabe estar no meio da multidão afadigada.
O poeta goza do incomparável privilégio de poder, à sua vontade, ser ele próprio outra pessoa. Como as almas errantes que procuram um corpo, insere-se, quando lhe apraz, na personagem de cada um. Para ele tudo está vago; e se certos lugares parecem estar-lhe vedados, é que a seus olhos não valem a pena visitar-se.
O passeante, solitário e pensativo extrai uma singular bebedeira desta comunhão universal. Aquele que se casa facilmente com a multidão conhece os prazeres febris de que ficarão privados o egoísta, fechado como um cofre, e o preguiçoso, recolhido como um molusco. Adapta como suas todas as profissões, todas as alegrias e todas as misérias que as circunstâncias lhe apresentam.
Aquilo a quem chama amor é bem pequeno. Bem restrito, e bem fraco, comparado à inefável orgia, à santa prostituição da alma que se dá toda inteira, em poesia e caridade, ao imprevisto que se mostra, ao desconhecido que passa.
É bom ensinar por vezes aos felizes deste mundo, nem que seja só para os humilhar um instante no seu estúpido orgulho, que há felicidades superiores às deles, mais vastas e delicadas. Os fundadores de colónias, os pastores de povos, os padres missionários exilados no fim do mundo, conhecem sem dúvida qualquer coisa destas misteriosas ebriedades; e no seio da vasta família que o seu génio constituiu, devem rir-se algumas vezes daqueles que os lamentam pela sina tão revolta e pela vida tão casta.

Charles Budelaire
[1821-1867]

domingo, setembro 23, 2007

A RUA DOS CATAVENTOS

Da vez primeira em que me assassinaram,
Perdi um jeito de sorrir que eu tinha.
Depois, a cada vez que me mataram,
Foram levando qualquer coisa minha.

Hoje, dos meu cadáveres eu sou
O mais desnudo, o que não tem mais nada.
Arde um toco de Vela amarelada,
Como único bem que me ficou.

Vinde! Corvos, chacais, ladrões de estrada!
Pois dessa mão avaramente adunca
Não haverão de arracar a luz sagrada!

Aves da noite! Asas do horror! Voejai!
Que a luz trêmula e triste como um ai,
A luz de um morto não se apaga nunca!

[Mario Quintana]

PROJETO DE PREFÁCIO

Sábias agudezas... refinamentos...
- não!
Nada disso encontrarás aqui.
Um poema não é para te distraíres
como com essas imagens mutantes de caleidoscópios.
Um poema não é quando te deténs para apreciar um detalhe
Um poema não é também quando paras no fim,
porque um verdadeiro poema continua sempre...
Um poema que não te ajude a viver e não saiba preparar-te para a morte
não tem sentido: é um pobre chocalho de palavras.

[Mario Quintana]

sábado, setembro 22, 2007

Sarah Brightman - Deliver Me (original video)

UM POEMA


Não tenhas medo, ouve.
É um poema,
um misto de oração e feitiço...
sem qualquer compromisso,
Ouve-o atentamente,
de coração lavado.
Poderás decorá-lo
e rezá-lo
ao deitar
ao levantar,
ou nas restantes horas de tristeza,
na segura certeza
de que mal não te faz.
E pode acontecer que te dê paz.


Miguel Torga


Até ao Fim



Mas é assim o poema: construído devagar,
palavra a palavra e mesmo verso a verso,
até ao fim.


O que não sei é como acabá-lo; ou até,
se o poema quer acabar.


Então peço-te ajuda:
puxo o teu corpo para o meio dele,
deito-o na cama da estrofe,
dispo-o de frases e de adjectivos
até te ver,
tu,
o mais nú dos pormenores.


Ficamos assim...
para trás palavras e versos
e tudo o que não é preciso dizer:
eu e tú, chamando o amor
para que o poema acabe



Nuno Júdice

JARDIM COM FLORES


Quem me compra um jardim
com flores?
borboletas de muitas cores,
lavadeiras e passarinhos,
ovos verdes e azuis nos ninhos?
Quem me compra este caracol?
Quem me compra um raio de sol?
Um lagarto entre o muro e a hera?
Uma estátua da Primavera?
Quem me compra este formigueiro?
E este sapo, que é jardineiro?
E a cigarra e a sua canção?
E o grilinho dentro do chão?
(Este é o meu leilão!)


Cecilia Meireles

A fonte

Sento-me agora diante de ti
com todas as minhas árvores
todas as minhas pedras
as luas e as flores das janelas
com que sonhei
com todos os meus poemas
as letras do meu nome
e este mar que me submerge
Sento-me agora diante de ti
com todo o meu sangue
todas as estradas das cidades tumultuosas
e as asas de julho em fogo
Sento-me diante de ti agora
e raras vezes fui tão inteiro
Sento-me agora diante de ti
com uma mão verde
que os teus ventos acariciam
e tudo o que posso fazer
é escrever
escrever
e escrever
confiar o mundo inteiro
no coração dum pequeno poema
à dimensão da tua mão tépida

[Ibrahim Nasrallah]

quinta-feira, setembro 20, 2007

À uma hora da manhã

Finalmente só!
Já nada se ouve a não ser o rolar de algumas carruagens. Durante uma hora pertence-nos o silêncio e o seu descanso. Finalmente! , a tirania da face humana desapareceu e só sofrerei por mim próprio.
Finalmente é-me permitido repousar num banho de trevas! Antes que me esqueça, duas voltas à fechadura. Este girar de chave vai aumentar a minha solidão e reforçar as barricadas que me separam do mundo. Desta vida horrível, desta horrível cidade.
Inventário do dia: contacto com alguns homens de letras, um dos quais me perguntou se era possível ir à Rússia por via terrestre ( tomava sem dúvida a Rússia por uma ilha): discussão generosa com o director de uma revista, que a cada objecção respondia: Isto aqui é um partido de gente honesta, o que implica que todos os outros jornais são redigidos por malandros; cumprimentos a vinte pessoas, quinze das quais totalmente desconhecidas; apertos de mão distribuídos em proporção, e isto sem tomada a precaução de comparar umas luvas; visita, para matar o tempo durante um aguaceiro, à casa de uma dançarina que me pediu para lhe desenhar um vestido de Venustra; namoro a um director de teatro que me disse ao despedir-me: V. talvez faça bem em se dirigir a Z…, é o mais pesadão, o mais burro e o mais célebre de todos os meus autores, com ele poderá chegar a qualquer coisa. Vá procurá-lo, e depois veremos; gabarolice de algumas más acções que jamais cometi, e o renegar cobardemente de certas outras faltas que cometi com alegria, delito de fanfarronice, crime contra o respeito humano; recusa a um amigo de um serviço fácil, recomendação escrita dada a um idiota perfeito; ufa!, já acabou?
Descontente com todos e comigo, bem gostaria de resgatar-me e insuflar-me um pouco de orgulho no silêncio e na solidão da noite.
Almas daquelas que amei, almas daquelas que cantei, confortai-me, afastai de mim a mentira e os infectos deste mundo; e vós senhor meu Deus, concedei-me a graça de produzir alguns belos versos que provem a mim mesmo que não sou o ultimo dos homens, que não sou inferior àqueles que desprezo.

[Charles Baudelaire]

Cury

“Temos de aproveitar as oportunidades que a vida nos oferece. Devemos encontrar os oásis nos nossos desertos. Os perdedores vêem os raios. Os vencedores vêem a chuva e com ela a oportunidade de cultivar. Os perdedores são paralisados pelas perdas e pelos fracassos. Os vencedores vêem uma oportunidade para começar tudo de novo.”

domingo, setembro 16, 2007

A noite reflectida


Alameda do Oceanos


Aqui tão perto...


sábado, setembro 15, 2007

Em Lisboa...


Casino


Estacionamento


quarta-feira, setembro 12, 2007

Aniversário

Hoje o telegráfico está de parabéns.Completa o seu primeiro aniversário.
Telegraficamente deixo aqui um pensamento pertinente de Epictetus:

“Eu rio dos que pensam que podem me prejudicar. Eles não sabem quem eu sou, não sabem o que eu penso, não podem sequer tocar as coisas que são realmente minhas e com as quais eu vivo.”

Boneca de pano

Minha boneca de pano
Mistura de chita e cetim
Minha boneca de pano
É um pedaço de mim ...

Minha boneca de pano
De olhos esverdeados e bochechas carmim
Tem o coração maior que o mundo
De humildade e bondade sem fim ...

Minha boneca de pano
Tem cheiro de lavanda e jasmim
É o meu lado mais doce
De infinita ternura , assim ...

Minha boneca de pano
Mistura de chita e cetim
Luz que clareia o céu
Da noite que há em mim ...

[Mena Moreira]

domingo, setembro 09, 2007

Alameda


sábado, setembro 08, 2007

Indícios de Outono…


Água


A porta da garagem…


Reflexo


quarta-feira, setembro 05, 2007

Quando puderes

Se não podes fazer da vida o que tu queres,
tenta ao menos isto,
quando puderes:
não a disperses em mundanas cortesias,
em vã conversa, fúteis correrias.

Não a tornes banal à força de exibida
e de mostrada muito em toda a parte
e a muita gente,
no vácuo dia-a-dia que é o deles
- até que seja em ti uma visita incómoda.

[Constantino Cavafy]

Scomber scombrus


Uma casa Portuguesa com certeza…


segunda-feira, setembro 03, 2007

Loira

domingo, setembro 02, 2007

Miúdas…


Olha a miúda…


sábado, setembro 01, 2007

O duelo do artista

Como um fim de dia de Outono é penetrante. Tão penetrante que chega a tornar-se doloroso, pois há nele certas emoções deliciosas cuja indefinição não exclui a intensidade; e não há ponta mais acerada que a do infinito.
Que enorme delicia, a de mergulhar os olhos na imensidade do céu e do mar! Solidão, silêncio, incomparável castidade do azul! Uma pequena vela que estremece no horizonte, e que pela sua pequenez e pelo seu isolamento imita a minha irremediável existência, a melodia monótona do marulhar das ondas, todas estas coisas pensam através de mim, ou eu através delas (pois na grandeza do sonho, o eu perde-se depressa); pensam sim, mas musicalmente sem argúcias, sem silogismos, sem deduções.
Entretanto esses pensamentos, que eles saiam de mim ou se desprendam das coisas, em breve se tornam intensos de mais. A força da volúpia cria um mal - estar e um sofrimento positivo. Os meus nervos demasiado tensos não dão mais que vibrações gritantes e dolorosas.
E agora a profundeza do céu consterna-me. A sua limpidez exaspera-me. A insensibilidade do mar, a imutabilidade do espectáculo revoltam-me… Será preciso sofrer eternamente, ou fugir eternamente do belo?
Natureza, feiticeira sem piedade, rival sempre vitoriosa, deixa-me! Cessa de provocar os meus desejos e o meu orgulho!
O estudo da beleza é um duelo em que o artista grita de pavor antes de ser vencido.

Charles Baudelaire
[1821 – 1867]