quinta-feira, setembro 27, 2007

As multidões

Nem todos é dado o prazer um banho de multidão: gozar a turba é uma arte; e só pode fazer um festim de vitalidade à custa do género humano aquele a quem uma fada insuflou no berço o gosto do disfarce e da máscara, o ódio ao domicílio e a paixão pelas viagens.
Multidão, solidão: termos iguais para o poeta activo e fecundo. Quem não sabe provar a sua própria solidão, também não sabe estar no meio da multidão afadigada.
O poeta goza do incomparável privilégio de poder, à sua vontade, ser ele próprio outra pessoa. Como as almas errantes que procuram um corpo, insere-se, quando lhe apraz, na personagem de cada um. Para ele tudo está vago; e se certos lugares parecem estar-lhe vedados, é que a seus olhos não valem a pena visitar-se.
O passeante, solitário e pensativo extrai uma singular bebedeira desta comunhão universal. Aquele que se casa facilmente com a multidão conhece os prazeres febris de que ficarão privados o egoísta, fechado como um cofre, e o preguiçoso, recolhido como um molusco. Adapta como suas todas as profissões, todas as alegrias e todas as misérias que as circunstâncias lhe apresentam.
Aquilo a quem chama amor é bem pequeno. Bem restrito, e bem fraco, comparado à inefável orgia, à santa prostituição da alma que se dá toda inteira, em poesia e caridade, ao imprevisto que se mostra, ao desconhecido que passa.
É bom ensinar por vezes aos felizes deste mundo, nem que seja só para os humilhar um instante no seu estúpido orgulho, que há felicidades superiores às deles, mais vastas e delicadas. Os fundadores de colónias, os pastores de povos, os padres missionários exilados no fim do mundo, conhecem sem dúvida qualquer coisa destas misteriosas ebriedades; e no seio da vasta família que o seu génio constituiu, devem rir-se algumas vezes daqueles que os lamentam pela sina tão revolta e pela vida tão casta.

Charles Budelaire
[1821-1867]

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