quinta-feira, novembro 27, 2008

O Estrangeiro

- De quem gostas mais?, diz lá, estrangeiro.
- De teu pai, de tua mãe, de tua irmã ou do teu irmão?
- Não tenho pai, nem mãe, nem irmãos.
- Dos teus amigos?
- Eis uma palavra cujo sentido sempre ignorei.
- Da tua pátria?
- Não sei onde está situada.
- Da beleza?
- Amá-la-ia de boa vontade se a encontrasse.
- Do oiro?
- Odeio-o tanto quanto vós a Deus.
- Então que amas tu singular estrangeiro?
- Amo as nuvens... as nuvens que passam... as maravilhosas nuvens!

[Charles Baudelaire]

Sempre

Do teu passado
não tenho ciúmes.

Vem com um homem
às costas,
vem com cem homens nos cabelos,
vem com mil homens entre o peito e os pés,
vem como um rio
cheio de afogados
que encontra o mar furioso,
a espuma eterna, o tempo!

Trá-los a todos
ao lugar onde te espero:
estaremos sempre sós,
estaremos sempre, tu e eu,
sozinhos sobre a terra
para começar a vida!

in Os Versos do Capitão
[Pablo Neruda]

UM BEIJO SEM NOME

Quando te disse que era da terra selvagem do vento azul e das praias morenas...
Do arco-íris das mil cores, do sol com fruta madura e das madrugadas serenas...
Das cubatas e musseques, das palmeiras com dendém, das picadas com poeira, da mandioca e fuba também...
Das mangas e fruta pinha, do vermelho do café, dos maboques e tamarindos, dos cocos, do ai u'é...
Das praças no chão estendidas, com missangas de mil cores os panos do Congo e os kimonos, os aromas, os odores...
Dos chinelos no chão quente, do andar descontraído, da cerveja ao fim de tarde, com o sol adormecido...
Dos merengues e do batuque, dos muquixes e dos mupungos dos imbomdeiro e das gajajas da macanha e dos maiungos.
Da cana doce e do mamão, da papaia e do cajú...

Tu sorriste e sussurraste 'Sou da mesma terra que tu!

[autor desconhecido]

terça-feira, novembro 25, 2008

já não é hoje ?
não é aquioje?

já foi ontem?
será amanhã?

já quandonde foi?
quandonde será?

eu queria um jàzinho que fosse
aquijá
tuoje aquijá.

[Alexandre O'Neill]

Entrei no café com um rio na algibeira

e pu-lo no chão,
a vê-lo correr
da imaginação...

A seguir, tirei do bolso do colete
nuvens e estrelas
e estendi um tapete
de flores
a concebê-las.

Depois, encostado à mesa,
tirei da boca um pássaro a cantar
e enfeitei com ele a Natureza
das árvores em torno
a cheirarem ao luar
que eu imagino.

E agora aqui estou a ouvir
A melodia sem contorno
Deste acaso de existir
-onde só procuro a Beleza
para me iludir
dum destino.

[José Gomes Ferreira]

segunda-feira, novembro 24, 2008

"Eu, Sempre..."

Eu sempre a Platão assisto.
Pessoalmente, porém, e creia que não
Tenho qualquer insuficiência nisto,
Sou um romano da decadência total,
Aquela do século IV depois de Cristo,
Com os bárbaros à porta e Júpiter no quintal.

[Mário Cesariny]

sábado, novembro 22, 2008

Nocas


quarta-feira, novembro 19, 2008

Quase um poema de amor

Há muito tempo já que não escrevo um poema
De amor.
E é o que eu sei fazer com mais delicadeza!
A nossa natureza
Lusitana
Tem essa humana
Graça
Feiticeira
De tornar de cristal
A mais sentimental
E baça
Bebedeira.

Mas ou seja que vou envelhecendo
E ninguém me deseje apaixonado,
Ou que a antiga paixão
Me mantenha calado
O coração
Num íntimo pudor,
--- Há muito tempo já que não escrevo um poema
De amor

[Miguel Torga]

Jactância de quietude

Escrituras de luz embestem a sombra, mais prodigiosa que meteoros.
A alta cidade irreconhecível se faz violenta sobre o campo.
Seguro da minha vida e da minha morte, vejo aos ambiciosos e quisesse
entendê-los.
Seu dia é ávido como o laço no ar.
Sua noite é trégua da ira no ferro, pronto em acometer.
Falam de humanidade.
Minha humanidade está em sentir que somos vozes de uma mesma
penúria.
Falam de pátria.
Minha pátria é um palpitado de violão, uns retratos e uma velha
espada,
a oração evidente do salgueiro nos entardeceres.
O tempo está vivendo-me.
Mais silencioso que minha sombra, cruzo o tumulto da sua levantada
cobiça.
Eles são imprescindíveis, únicos, merecedores do amanhã. Meu
nome é alguém e qualquer.
Seu verso é um requerimento de alheia admiração.
Eu solicito do meu verso que não me contradiga, e é muito.
Que não seja persistência de formosura, mas sim de certeza
espiritual.
Eu solicito do meu verso que os caminhos e a solidão o testemunhem.
Gostosamente ociosa a fé, passou beirando meu viver.
Passou com lentidão, como quem vem de tão longe que não espera
chegar.

[Jorge Luis Borges]

Dá-me a Tua Mão

Dá-me
a tua mão:
Vou agora te contar
como entrei no inexpressivo
que sempre foi a minha busca cega e secreta.
De como entrei
naquilo que existe entre o número um e o número dois,
de como vi a linha de mistério e fogo,
e que é linha sub-reptícia.

Entre duas notas de música existe uma nota,
entre dois factos existe um facto,
entre dois grãos de areia por mais juntos que estejam
existe um intervalo de espaço,
existe um sentir que é entre o sentir
– nos interstícios da matéria primordial
está a linha de mistério e fogo
que é a respiração do mundo,
e a respiração contínua do mundo
é aquilo que ouvimos
e chamamos de silêncio.

[Clarice Lispector]

Cala-te...

Cala-te, voz que duvida
e me adormece
a dizer-me que a vida
nunca vale o sonho que se esquece.

Cala-te, voz que assevera
e insinua
que a primavera
a pintar-se de lua
nos telhados,
só é bela
quando se inventa
de olhos fechados
nas noites de chuva e de tormenta.

Cala-te, sedução
desta voz que me diz
que as flores são imaginação
sem raiz.

Cala-te, voz maldita
que me grita
que o sol, a luz e o vento
são apenas o meu pensamento
enlouquecido….

(E sem a minha sombra
o chão tem lá sentido!)

Mas canta tu, voz desesperada
que me excede.
E ilumina o Nada
Com a minha sede.

[José Gomes Ferreira]

quarta-feira, novembro 12, 2008

Cais da Palafita


Foto: Gentileza A. Fachada

Cais da Palafita


Foto: Gentileza A. Fachada

Cais da Palafita

Foto: Gentileza A. Fachada

Cais da Palafita


Foto: Gentileza A. Fachada

Arrozais

Foto: Gentileza A. Fachada

Arrozais


Foto: Gentileza A. Fachada

segunda-feira, novembro 10, 2008

(dream)

Qualquer coisa de obscuro permanece
No centro do meu ser. Se me conheço,
É até onde, por fim mal, tropeço
No que de mim em mim de si se esquece.

Aranha absurda que uma teia tece
Feita de solidão e de começo
Fruste, meu ser anónimo confesso
Próprio e em mim mesmo a externa treva desce.

Mas, vinda dos vestígios da distância
Ninguém trouxe ao meu pálio por ter gente
Sob ele, um rasgo de saudade ou ânsia.

Remiu-se o pecador impenitente
À sombra e cisma. Teve a eterna infância,
Em que comigo forma um mesmo ente.

[Fernando Pessoa]

Um Dia a Solidão

Um dia, a solidão
- que dor de vergonha! -
levou-me pela mão
para seu baluarte
e disse-me " sonha!
O sonho é a tua lei"

E eu para ali fiquei,
Tão farto de ser eu,
A ouvir o meu coração
Bater em toda a parte,
Nos astros do chão,
Nas pedras do céu.

E eu para ali fiquei
A arrancar a carne das unhas,
Sozinho no meu jardim,
A viver sem testemunhas
No espelho de mim.

E eu para ali fiquei
Com o mundo a obedecer aos meus caprichos:
A luz, as flores, os bichos

E o sol enforcado na floresta,
Na alucinação
Duma corda de lava
A baloiçar ao vento da minha alma à solta…

E eu para ali fiquei
- pobre de mim que ignorava
a dor da verdadeira solidão
que é esta! Que é esta!…

Muita gente à minha volta
E eu aos tombos pelas ruas,
longe de todos e de mim,
a morrer pelos outros
em barricadas de estrelas e de luas.

[José Gomes Ferreira]

Quem anda nos meus olhos ...

Quem anda nos meus olhos
A querer salvar o mundo
Com espadas de lágrimas?

És tu D. Quixote, e vou matar-te.

Quem anda na minha sombra
A arrastar a armadura negra
Do Cavaleiro da Resignação

És tu D. Quixote, e vou matar-te.

Quem anda na minha alma
A querer estrangular gigantes
Com mãos de adormecer lírios ?

És tu D. Quixote, e vou matar-te.

Quem anda na minha ira
A enterrar punhais de solidão
Nos monstros dos Desvios Nevoentos?

És tu D. Quixote , e vou matar-te.

Quem anda no meu sonho
A ressuscitar filhos mortos nos regaços,
Para morrerem outra vez de fome?

És tu D. Quixote, e vou matar-te.

Quem anda na minha voz,
A iludir-me de clangores de peleja
Na cidade dos inimigos trocados?

És tu D. Quixote, e vou matar-te.

Sim, matar-te
Para nunca mais sentir na cara
o frio de lâmina das tuas lágrimas

E ficar diante da vida,
Terrível e seco
De mãos nuas
- à espera de outras mãos de algum dia,
Suadas da camaradagem do mundo novo.

[José Gomes Ferreira]

Súplica

Agora que o silêncio é um mar sem ondas,
E que nele posso navegar sem rumo,
Não respondas
Às urgentes perguntas
Que te fiz.
Deixa-me ser feliz
Assim,
Já tão longe de ti como de mim.

Perde-se a vida a desejá-la tanto.
Só soubemos sofrer, enquanto
O nosso amor
Durou.
Mas o tempo passou,
Há calmaria...
Não perturbes a paz que me foi dada.
Ouvir de novo a tua voz seria
Matar a sede com água salgada.

[Miguel Torga]

ARIANE

Ariane é um navio.
Tem mastros, velas e bandeira à proa,
E chegou num dia branco, frio,
A este rio Tejo de Lisboa.

Carregado de Sonho, fundeou
Dentro da claridade destas grades...
Cisne de todos, que se foi, voltou
Só para os olhos de quem tem saudades...

Foram duas fragatas ver quem era
Um tal milagre assim: era um navio
Que se balança ali à minha espera
Entre as gaivotas que se dão no rio.

Mas eu é que não pude ainda por meus passos
Sair desta prisão em corpo inteiro,
E levantar âncora, e cair nos braços
De Ariane, o veleiro.

[Miguel Torga]

Apelo

Porque
não vens agora, que te quero
E adias esta urgência?
Prometes-me o futuro e eu desespero
O futuro é o disfarce da impotência....

Hoje, aqui, já, neste momento,
Ou nunca mais.
A sombra do alento é o desalento
O desejo o imite dos mortais.

[Miguel Torga]

domingo, novembro 09, 2008

Vem Vento, Varre

Vem vento, varre
sonhos e mortos.
Vem vento, varre
medos e culpas.
Quer seja dia,
quer faça treva,
varre sem pena,
leva adiante
paz e sossego,
leva contigo
noturnas preces,
presságios fúnebres,
pávidos rostos
só covardia.
Que fique apenas
ereto e duro
o tronco estreme
de raiz funda.
Leva a doçura,
se for preciso:
ao canto fundo
basta o que basta.

Vem vento, varre!

[ADOLFO CASAIS MONTEIRO]

sábado, novembro 08, 2008

Prelúdio

Sonho que se sonha só
É um sonho que se sonha só
Mas sonho que se sonha junto
É realidade

[Raul Seixas]

sexta-feira, novembro 07, 2008

Análise da sombra

Analisa-se da sombra
seu carácter permanente:
pela manhã retraindo
a imagem, à tarde crescente.


E aquele instante em que a sombra
adelgaça o corpo fino
como se no chão entrasse
quando o sol se encontra a pino.


Quem a esse instante mira
em oposição ao lado
onde o sol era luz antes
logo vê o passo vago


da sombra que agora cresce
o corpo de onde se filtra
até fundir-se no limbo
que em torno dela gravita.


Forma esse limbo a coroa
que as sombras traz federadas:
soma de todas as sombras
num só nó à noite atadas.

[César Leal]

AEROPORTO

Redemoinha
preso o vento
- o vento ou o pensamento?
nas asas de prata e sol.
Surdamente
zune o vento
- o vento ou o pensamento
na torre de ferro e sol.

Desliza
veloz o vento
- o vento ou o pensamento?
na pista de asfalto e sol.

Parte o pássaro
ao vento.
Partido
o pensamento
quem fica
parte
de quem
partindo
assim se
reparte
pensamento
vento
sol.

[Bernadette Lyra]

Minhas entranhas são impregnadas de passados

Minhas entranhas são impregnadas de passados.
Estou sempre às voltas com as minhas lembranças,
a brincar-lhes passando-as delicadamente
entre meus dedos cansados, seu odor sorvendo,
absorvendo-lhes cada sensação já ímpar.

E se, por alguma artimanha casual,
pudéssemos, súbito, voltar ao lugar
já há tempos partido, revivê-lo pleno,
reconviver com as tão velhas impressões,
com a mesma velha disposição de objectos?
E se retornados a esse lugar místico
percebêssemos que ele e as pessoas estão
rigorosamente os mesmos, que o tempo não
passou-lhes, que nunca mais haverá saudade?
As paredes, então, não se nos mostrariam
escuras, enegrecidas como se muito
surradas pelas visões de tantas histórias,
como se, assim como connosco, lhes pesasse
o passado, ferida sempre aberta na alma
– a saudade – que jamais cicatrizará.
E se pudéssemos ser aqueles de outrora
sem sermos criaturas estranhas à gente?
E se fôssemos continuamente tão nossos
a ponto de não mais precisarmos chorar?
Tão nossos que o amanhã jamais derramaria
sobre nossas cabeças suas incertezas,
e o fogo do agora nos governaria?

E se nunca perdêssemos essa vontade
essa volúpia dos reencontros tardios
em que a única coisa a ser feita é comer
devorar os instantes, por si só, fugazes?

Hoje, contemplando antigas fotografias,
percebi que as lembranças me são dolorosas
porque embora muito presentes, são lembranças,
meramente.

[André de Oliveira Coelho]

A mesma brisa

A mesma brisa
De entardeceres passados
Lambe minha pele
E me faz revivê-los.

E enlaçado por intrépidos braços
– Poentes Sempre –
Percebo com triste doçura:
Meus amores têm a cor do entardecer.

[André de Oliveira Coelho]

Cão

Cão passageiro, cão estrito,
Cão rasteiro cor de luva amarela,
Apara-lápis, fraldiqueiro,
Cão liquefeito, cão estafado,
Cão de gravata pendente,
Cão de orelhas engomadas,
De remexido rabo ausente,
Cão ululante, cão coruscante,
Cão magro, cão tétrico, maldito,
A desfazer-se num ganido,
A refazer-se num latido,
Cão disparado: cão aqui,
Cão além, e sempre cão.
Cão amarrado, preso a um fio de cheiro,
Cão a esburgar o osso
Essencial do dia a dia,
Cão estouvado de alegria,
Cão formal de poesia,
Cão-sonêto de ão-ão bem martelado,
Cão moldo de pancada
E condoído do dono,
Cão: esfera do sono,
Cão de pura invenção, cão pré-fabricado,
Cão-espelho, cão-cinzeiro, cão-botija,
Cão de olhos que afligem,
Cão-problema...
Sai depressa, ó cão, deste poema!

[Alexandre O'Neill]

domingo, novembro 02, 2008

A companheira

Não te busquei, não te pedi: vieste.
E desde que eu nasci houve mil coisas
que os meus olhos se deram com igual
simplicidade: o Sol, a manhã de hoje,
essa flor que é tão grácil que a não quero,
o milagre das fontes pelo Estio…
Vieste (O Sol veio também, a flor,
a manhã de hoje, as águas…).Alegria,
mas calada alegria, mas serena,
entendimento puro, natural
encontro, natural com a chegada
do Sol, da flor, das águas, da manhã,
de ti, que eu não buscara nem pedira.

E o Amor? E o Amor? E o Amor?
-: Vieste.
[Sebastião da Gama]