domingo, outubro 28, 2007

DESENCONTRÁRIOS

Mandei a palavra rimar,
ela não me obedeceu.
Falou em mar, em céu, em rosa,
em grego, em silêncio, em prosa.
Parecia fora de si,
a sílaba silenciosa.

Mandei a frase sonhar,
e ela se foi num labirinto.
Fazer poesia, eu sinto, apenas isso.
Dar ordens a um exército,
para conquistar um império extinto.

[Paulo Leminski]

O Universo não é uma Ideia Minha...

O universo não é uma ideia minha.
A minha ideia do Universo é que é uma ideia minha.
A noite não anoitece pelos meus olhos,
A minha ideia da noite é que anoitece por meus olhos.
Fora de eu pensar e de haver quaisquer pensamentos
A noite anoitece concretamente
E o fulgor das estrelas existe como se tivesse peso.

[Fernando Pessoa]

PEDRA FILOSOFAL

Eles não sabem que o sonho
é uma constante da vida
tão concreta e definida
como outra coisa qualquer,
como esta pedra cinzenta
em que me sento e descanso,
como estes pinheiros altos
que em verde e oiro se agitam,
como estas aves que gritam
em bebedeiras de azul.

Eles não sabem que o sonho
é vinho, é espuma, é fermento,
bichinho álacre e sedento,
de focinho pontiagudo,
que fossa através de tudo
num perpétuo movimento.

Eles não sabem que o sonho
é tela, é cor, é pincel,
base, fuste, capitel,
arco em ogiva, vitral,
pináculo de catedral,
contraponto, sinfonia,
máscara grega, magia,
que é retorta de alquimista,
mapa do mundo distante,
rosa-dos-ventos, Infante,
caravela quinhentista,
que é Cabo da Boa Esperança,
ouro, canela, marfim,
florete de espadachim,
bastidor, passo de dança,
Colombina e Arlequim,
passarola voadora,
pára-raios, locomotiva,
barco de proa festiva,
alto forno, geradora,
cisão do átomo, radar,
ultra-som, televisão,
desembarque em foguetão
na superfície lunar.

Eles não sabem, nem sonham,
que o sonho comanda a vida.
Que sempre que um homem sonha
o mundo pula e avança
como bola colorida
entre as mãos de uma criança

[António Gedeão]

Medo da morte?

Medo da morte?
Acordarei de outra maneira,
Talvez corpo, talvez continuidade, talvez renovado,
Mas acordarei.
Se até os átomos não dormem, por que hei-de ser eu só a dormir?

[Alberto Caeiro]

quarta-feira, outubro 24, 2007

Joaquim pessoa

De onde me chegam estas palavras?

De onde me chegam as palavras?

Nunca houve palavras para gritar a tua ausência.

Apenas o coração
pulsando a solidão antes de ti
quando o teu rosto doía no meu rosto e eu descobri as minhas mãos
sem as tuas
e os teus olhos não eram mais que o lugar escondido onde a primavera
refaz o seu vestido de corolas.

E não havia um nome para a tua ausência.

Mas tu vieste.

De coração da noite?
Dos braços da manhã?
Dos bosques do outono?

Tu vieste.

E acordas todas as horas.
Preenches todos os minutos.
Acendes todas as fogueiras.
Escreves todas as palavras.

Em canto de alegria desprende-se dos meus dedos
Quando toco o teu corpo e habito em ti
E a noite não existe
Porque as nossas bocas acendem na madrugada
Uma aurora de beijos.

Oh, meu amor,
Doem-se os braços de te abraçar,
Trago as mãos acesas,
A boca desfeita
E a solidão acorda em mim um grito de silêncio quando
O medo de perder-te é um cordel que pisa os meus cabelos
E se perde depois numa estrada deserta por onde
Caminhas nua
Como se estivesses triste.



De esperas construímos o amor intenso e súbito

De esperas construímos o amor intenso e súbito
que encheu as tuas mãos de sol e a tua boca de beijos.
Em estranhos desencontros nos amamos.
Havia o rio mas sempre ficávamos na margem.
Eu tocava o teu peito e os teus olhos e, nas minhas mãos,
a tarde projectava as suas grandes sombras
enquanto as gaivotas disputavam sobre a água
talvez um peixe inquieto, algo que nunca pudemos ver.
As nossas bocas procuravam-se sempre, ávidas e macias
E por muito tempo permaneciam assim, unidas,
Machucando-se, torturando as nossas línguas quase enlouquecidas.
Depois olhávamo-nos nos olhos
No mais profundo silêncio. E, sem palavras,
Partíamos com as mãos docemente amarradas e os corações estoirando uma alegria breve
Quando a noite descia apaixonada
Como o longo beijo da nossas despedida.

terça-feira, outubro 23, 2007

Vasco da Gama


golden


Grávida


Círculos


sobre a mesa deixei algumas palavras

sobre a mesa deixei algumas palavras
para gastarem a sua precisão obscura
ressumando humidades, revelando
o percurso do pensamento pela estação
até se identificarem com os cursos de água
que vemos por alguns dias
as principais páginas que nos forçam
a herança, disseminadas pelo ruído
até aos ossos
e quando abro a porta, de regresso, encontro-as
tão breves sobre o meu ouvido, atentas
à minha maneira de andar descalço.

VASCO FERREIRA CAMPOS
[de A Voz à Chuva Guimarães, Pedra Formosa 1996]

domingo, outubro 21, 2007

Café XII - De repente, o café tornou-se cósmico

Vais perguntar outra vez porque existes?
Para quê? Para ficares com os olhos
[do tamanho de ilhas tristes?]
Pois não sabes que já milhões como tu e como eu
pediram em vão às aves
que procurassem nas nuvens naquela Porta
de que nem a Morte tem as chaves?
E quem a abriu? Quem sabe que Porta é?
(Rapaz! Mais um café!)
Vais perguntar outra vez porque existes?
Para quê? Para ficares com os olhos
[do tamanho de ilhas tristes?]
Pois não sabes que já milhões como tu e como eu
pediram em vão às aves
que procurassem nas nuvens naquela Porta
de que nem a Morte tem as chaves?
E quem a abriu? Quem sabe que Porta é?
(Rapaz! Mais um café!)

[JOSÉ GOMES FERREIRA]

sábado, outubro 20, 2007

ESTA SAUDADE

Esta saudade, que tanto faz sofrer,
Este passado, que eu queria reviver
E que só na memória ainda vive;
Bens que encontrei e hoje estão perdidos,
Contas rezadas, de terços já partidos,
Tudo o que já não tenho e um dia tive;

Tantos de quem gostei e já perdi,
Fatos com renda que um dia já vesti,
Tudo o que hoje é só recordação;
Estradas, caminhos, que um dia já pisei,
Lugares saudoso, onde já brinquei,
Tudo é saudade que afoga o coração!

Altas montanhas onde um dia fui,
O berço azul de mar onde dormia,
O papagaio de tela, aquele balão;
Os sinos que tocavam às Trindades,
Todo o passado, p’ra mim, são só saudades
E já sem espaço, sequer, p’ra uma ilusão!

[José Manuel Pyrrait]

domingo, outubro 14, 2007

DISSE-ME ALGUÉM

Disse-me alguém, um dia, e não quis crer
Que a base desta vida era sofrer,
E p’ra além disso, muito pouco havia.
Eu estava ainda no amanhecer,
Mas hoje, ao vê-la, aos poucos, desprender,
Vejo a razão do que esse alguém dizia.

[José Pyrrait]

HISTÓRIA BREVE

Hipóteses certeiras mas falhadas;
E certezas enormes que ruíram.
Mas entretanto, foi passando a vida
Que hoje é só mar de lágrimas salgadas!
- O maior que já meus olhos viram –
E tudo de repente, de fugida!...

[José Pyrrait]

quinta-feira, outubro 11, 2007

Inicio do sonho dos miúdos - printwork


Tempo


razão para mudar o tempo
mas, há razão para querer pará-lo.

Há razão para matar o tempo
como há razão para sonhá-lo

Há razão para existir no tempo
razão também há para ele existir, somente

Porém, há uma razão maior:
a de tornar infinito
o pouco que resta do tempo.

[Odete Silva]

Lisboa

— Mãe! Quero ver o Castelo
E depois fecha-me os olhos!

Adeus Terreiro do Paço!
Adeus Torre de Belém!
Adeus ruelas estreitas
Altas horas, sem ninguém!

Adeus estrelas tombando
Nas águas mansas do Tejo!
Adeus, adeus nostalgia
Das saudades que antevejo!

Adeus guitarras gemendo
Através dos bairros fáceis!
Adeus varinas-meninas
Dos seios que foram gráceis!
Adeus sotaque estrangeiro
Que a guerra trouxe até nós!
Adeus fadista em que o fado
Serviu de herói e de algoz!
Adeus poetas sem pátria!
Adeus pátria dos poetas!
Adeus Lisboa, cidade
Que no sonho te completas!

— Mãe! Quero ver o Castelo
E depois fecha-me os olhos!

[Noel de Arriaga]

Poema dum Funcionário Cansado

A noite trocou-me os sonhos e as mãos
dispersou-me os amigos
tenho o coração confundido e a rua é estreita
estreita em cada passo
as casas engolem-nos
sumimo-nos
estou num quarto só num quarto só
com os sonhos trocados
com toda a vida às avessas a arder num quarto só
Sou um funcionário apagado
um funcionário triste
a minha alma não acompanha a minha mão
Débito e Crédito Débito e Crédito
a minha alma não dança com os números
tento escondê-la envergonhado
o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal em frente
e debitou-me na minha conta de empregado
Sou um funcionário cansado dum dia exemplar
Por que não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever?
Por que me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço
Soletro velhas palavras generosas
Flor rapariga amigo menino
irmão beijo namorada
mãe estrela música
São as palavras cruzadas do meu sonho
palavras soterradas na prisão da minha vida
isto todas as noites do mundo numa só noite comprida
num quarto só

[António Ramos Rosa]

terça-feira, outubro 09, 2007

O tempo meus amigos

Saber que os amigos não necessitam de tempo,
saber que são os mesmos
e todavia distantes
a aqueles que o foram
quando os anos nossos
nos brindaram sua essência
do "companheiro eterno".

Porém voltam, persistem
e são tempo e castigo:
a idade não diferencia
a visão do amigo.
Minha idade, tua idade, a sua
não são marcas brutais
que separam os meus

O tempo
-novamente me enfrento com o tempo-
é uma forma doce
da constante lembrança.

Saber que os amigos
são de minha voz o tempo.
Saber que eles comigo
Ajudam-me ao eterno.

E então, cada dia
se volta ao princípio
de saber que um amigo
é uma voz sem tempo.

[Jose Luis Appleyard]

Devia morrer-se de outra maneira…

Devia morrer-se de outra maneira.
Transformarmo-nos em fumo, por exemplo.
Ou em nuvens.
Quando nos sentíssemos cansados, fartos do mesmo sol
a fingir de novo todas as manhãs, convocaríamos
os amigos mais íntimos com um cartão de convite
para o ritual do Grande Desfazer: "Fulano de tal comunica
a V. Exa. que vai transformar-se em nuvem hoje
às 9 horas. Traje de passeio".
E então, solenemente, com passos de reter tempo, fatos
escuros, olhos de lua de cerimónia, viríamos todos assistir
a despedida.
Apertos de mãos quentes. Ternura de calafrio.
"Adeus! Adeus!"
E, pouco a pouco, devagarinho, sem sofrimento,
numa lassidão de arrancar raízes...
(primeiro, os olhos... em seguida, os lábios... depois os cabelos... )
a carne, em vez de apodrecer, começaria a transfigurar-se
em fumo... tão leve... tão subtil... tão pólen...
como aquela nuvem além (vêem?) — nesta tarde de Outono
ainda tocada por um vento de lábios azuis...

[José Gomes Ferreira]

sábado, outubro 06, 2007

Manifestação Espoliados do Ultramar no dia 19.10.2007,às 10 horas, no Parque das Nações, junto à Gare do Oriente

NOTA DE IMPRENSA

Os espoliados ultramarinos, vítimas da descolonização, vão manifestar-se no próximo dia 19 de Outubro (sexta-feira), às 10 horas, no Parque das Nações, junto à Gare do Oriente, até ao Pavilhão Atlântico, para manifestarem publicamente a sua repulsa pela injustiça do Estado Português, que os tem discriminado em relação ao seu direito de serem indemnizados pelo esbulho causado pela mesma descolonização.
Há mais de 30 anos que reivindicam junto dos governantes e dos deputados um direito, já reconhecido por vários governantes, como o Dr. Francisco Sá Carneiro, Prof. Dr. Aníbal Cavaco Silva, Dr. Paulo Portas, Dr. João Cravinho, Prof. Dr. Adriano Moreira, general Silvino Silvério Marques, Dr. Almeida Santos, Prof. Dr. Veiga Simão, entre outros. O próprio Estado Português reconhece a justa pretensão dos espoliados do ex-Ultramar, mas, até ao momento, não assumiu a responsabilidade do seu pagamento, endossando-o para os novos Estados lusófonos, o que contraria o Artº 7º da Constituição da República (Relações Internacionais), que expressa a não ingerência em Estados terceiros.
Juristas de renome internacional como o Prof. Doutor Fausto Quadros, Álvaro de Almeida e Cunha, Miguel Pedrosa Machado e Rodrigues Esteves de Oliveira, cujos pareceres, solicitados pela AEANG, em 1994, concluem que o Estado português violou os direitos fundamentais reconhecidos pelo próprio Estado aos cidadãos portugueses. De acordo com o Prof. Dr. Fausto Quadros existiu uma violação, por parte do Estado Português “pela contínua violação, por omissão constante e persistente, da obrigação de protecção diplomática dos cidadãos portugueses em Angola, obrigação essa que vincula Portugal em grau supra constitucional, para além de ser imposta por preceito expresso da Constituição de 1976”.
A situação criada pelo Estado português aos Espoliados ultramarinos é uma nódoa no orgulho nacional, pois aquele tem de honrar o presente, reparando os erros do passado.


NOTA:
Para informações adicionais queira, por favor, contactar as Associações

AEANG - ASSOCIAÇÃO DOS ESPOLIADOS DE ANGOLA
Tel/Fax: 351.218870063
http://www.aeang.com/

AEMO - ASSOCIAÇÃO DOS ESPOLIADOS DE MOÇAMBIQUE
Tel./Fax: 351.218809996
http://www.aemo.org/

Foi-se gastando a esperança

Foi-se gastando a esperança,
Fui entendendo os enganos;
Do mal ficarão me os danos,
E do bem só a lembrança

O mundo bem e mal tem,
E porém é ele tal
Que dá poucas vezes bem,
Se não é por mal.
E o mais certo se alcança
Dele em fim de muitos anos
É do mal todos os danos,
E do bem só a lembrança.

Vejo sempre o mal presente,
E o bem vir ou passado.
Do passado estou ausente!
Do porvir desesperado!
Vejo no bem mil enganos,
E no mal nenhuma mudança
Se não dobrar-se os danos
Com ter do bem só lembrança.

S’em tal vida tanto duro,
Isto nela me sustém,
Vivo, de mais mal seguro;
Não me haja’qui outro bem.

[Sá de Miranda]

Máquinas - printwork


Fachada- printwork


Móveis giros - printwork


Em ângulo - printwork


Apetrechamento - printwork


Sonhos e realidades - printwork


quarta-feira, outubro 03, 2007

O verão deixa-me os olhos mais lentos sobre os livros

O verão deixa-me os olhos mais lentos sobre os livros.
As tardes vão-se repetindo no terraço, onde as palavras
são pequenos lugares de memória. Estou divorciada dos
outros pelo tempo destas entrelinhas - longe de casa,
tenho sonhos que não conto a ninguém, viro devagar

a primeira página: em fevereiro, eles ainda faziam amor
à sexta-feira. De manhã, ela torrava pão e espremia
laranjas numa cozinha fria. Havia mais toalhas para lavar
ao domingo, cabelos curtos colados teimosamente ao espelho.
Às vezes, chovia e ambos liam o jornal, dentro do carro,
antes de se despedirem. As vezes, repartiam sofregamente
a infância, postais antigos, o silêncio - nada

aconteceu entretanto. Regresso, pois, à primeira linha,
à verdade que remexe entre as minhas mãos. Talvez os olhos
estivessem apenas desatentos sobre o livro; talvez as histórias
se repitam mesmo, como as tardes passadas no terraço, longe
de casa. Aqui tenho sonhos que não conto a ninguém.

Maria do Rosário Pedreira
[A Casa e o Cheiro dos Livros]