quinta-feira, setembro 20, 2007

À uma hora da manhã

Finalmente só!
Já nada se ouve a não ser o rolar de algumas carruagens. Durante uma hora pertence-nos o silêncio e o seu descanso. Finalmente! , a tirania da face humana desapareceu e só sofrerei por mim próprio.
Finalmente é-me permitido repousar num banho de trevas! Antes que me esqueça, duas voltas à fechadura. Este girar de chave vai aumentar a minha solidão e reforçar as barricadas que me separam do mundo. Desta vida horrível, desta horrível cidade.
Inventário do dia: contacto com alguns homens de letras, um dos quais me perguntou se era possível ir à Rússia por via terrestre ( tomava sem dúvida a Rússia por uma ilha): discussão generosa com o director de uma revista, que a cada objecção respondia: Isto aqui é um partido de gente honesta, o que implica que todos os outros jornais são redigidos por malandros; cumprimentos a vinte pessoas, quinze das quais totalmente desconhecidas; apertos de mão distribuídos em proporção, e isto sem tomada a precaução de comparar umas luvas; visita, para matar o tempo durante um aguaceiro, à casa de uma dançarina que me pediu para lhe desenhar um vestido de Venustra; namoro a um director de teatro que me disse ao despedir-me: V. talvez faça bem em se dirigir a Z…, é o mais pesadão, o mais burro e o mais célebre de todos os meus autores, com ele poderá chegar a qualquer coisa. Vá procurá-lo, e depois veremos; gabarolice de algumas más acções que jamais cometi, e o renegar cobardemente de certas outras faltas que cometi com alegria, delito de fanfarronice, crime contra o respeito humano; recusa a um amigo de um serviço fácil, recomendação escrita dada a um idiota perfeito; ufa!, já acabou?
Descontente com todos e comigo, bem gostaria de resgatar-me e insuflar-me um pouco de orgulho no silêncio e na solidão da noite.
Almas daquelas que amei, almas daquelas que cantei, confortai-me, afastai de mim a mentira e os infectos deste mundo; e vós senhor meu Deus, concedei-me a graça de produzir alguns belos versos que provem a mim mesmo que não sou o ultimo dos homens, que não sou inferior àqueles que desprezo.

[Charles Baudelaire]

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