terça-feira, janeiro 01, 2008

CATABÁSE INTERIOR

Neste tempo sujo, em que as migrações das aves
desertaram o céu, uma tinta de séculos derrama-se
pelos limites da mesa. Apanho as suas manchas do chão
da estrofe, e deito-as para o limbo das imagens
que me esperam. Ao cair, turvando a negra superfície
em que as nuvens se espelham, acorda um lamento
de gerações adormecidas – mas logo se esvai
no esquecimento do fundo. Desço até lá, procurando
rostos que se perderam; e sinto-me puxado para
o caos das vozes nascidas de uma exasperação
de lábios. Mando-as calar; e o silêncio torna-se
definitivo, como se tivessem deixado de querer
contar as suas vidas, ou as suas histórias se tivessem
afundado na melancolia do sono.

Que fazer das flores caídas na campa do tempo,
espalhando à sua volta o perfume dos
mortos? Arranco-as dos vasos em que secaram,
e junto-as às imagens inúteis, vendo-as criar
raiz num lodo de antigas ressacas. Agora, poderei
lê-las; e descobrir no intervalo das pétalas
as significações obscuras, como se nelas houvessem
novas mensagens a indicar uma saída. Mas
só encontro uma elegia lenta, com a sua música
ressequida; e repito-a devagar, para que
o seu ritmo erga de entre as pedras os corpos
que amei. E o som embebede as paredes, e
escurece-as com o musgo que se alimenta
da solidão que as velhas imagens nos deixaram.

Como sair daqui? Por que escada me libertarei
desta abóbada de sensações amortalhadas? Empurro
a porta, porém; e logo o ar do dia entra em mim.
Limpando-me da noite de todas as memórias.

[Nuno Júdice]

1 comentário:

Anónimo disse...

Parabens por mais uma netinha. Olhando bem para a segunda foto, noto uma parecenca a sua bisavo.